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Fiscal de recuperação judicial assume gestão provisória em empresa

28/07/2023

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O chamado “cão de guarda”, profissional que fiscaliza o caixa de empresas em processo de recuperação judicial, ganhou superpoderes com uma decisão da Justiça de São Paulo. Foi convocado para atuar como gestor da companhia - em substituição aos sócios administradores, afastados por ordem judicial.

Especialistas dizem que a decisão é inédita. A Lei de Recuperações e Falências (nº 11.101, de 2005) prevê o afastamento dos gestores quando há indícios de que estão prejudicando a recuperação da empresa.

Nesses casos, pela legislação, quem assume a função é o administrador judicial. Ele fica até que os credores, em assembleia-geral, deliberem sobre um gestor judicial para ocupar o cargo.

A novidade na decisão proferida agora é que em vez de nomear o administrador judicial do processo de recuperação, a juíza optou por convocar o “cão de guarda”.

Essa figura - também conhecida como observador judicial - não está prevista na lei brasileira. Mas vem sendo vista com certa frequência em processos polêmicos e complexos, a pedido de credores e administradores judiciais. Julio Mandel, sócio do Mandel Advocacia, especializado na área, cita como exemplo os processos de recuperação da Itapemirim e da Americanas.

"Há uma tendência em se criminalizar a recuperação judicial ou os devedores”

— Ricardo Siqueira

Em ambos, a inclusão da figura do “cão de guarda” foi solicitada pelos credores e houve reação da empresa. A Americanas, por exemplo, conseguiu uma liminar no fim de junho contra a contratação desse profissional.

Em geral, o “cão de guarda” é uma medida menos drástica que o afastamento dos gestores das empresas em recuperação. O gestor, por conhecer o negócio e ter contato com clientes e fornecedores, continua no cargo e o fiscal entra para vigiar.

A ideia principal é “farejar” gastos. Fiscalizar excessos ou desvios e fraudes que possam estar sendo cometidos e reportar ao juiz da recuperação.

A decisão inédita que nomeou o “cão de guarda” como gestor provisório da companhia foi proferida pela juíza Renata Salmaso, da 1ª Vara de Tietê, interior de São Paulo, no processo de recuperação da Avícola Dacar.

Consta na decisão que os sócios administradores foram afastados de suas funções por não apresentarem documentos e movimentarem altos valores sem lastro documental. Conduta que, segundo a juíza, “está a indicar a caracterização de dilapidação patrimonial”.

Essa decisão teve como base relatórios elaborados pelo “cão de guarda”. A OnBehalf Auditores e Consultores desempenhava esse papel desde julho do ano passado e foi, agora, nomeada como substituta dos gestores.

“Não é nada comum uma decisão como essa”, diz a advogada Ana Carolina Monteiro, especialista em recuperações judiciais. “Mas se o administrador judicial não impugnar a nomeação, dificilmente haverá mudança”, frisa.

A juíza Renata Salmaso afirma, na decisão, que os sócios administradores da Avícola Dacar terão que informar ao “cão de guarda” sobre tratativas comerciais em aberto e outras questões administrativas, “cooperando de forma ampla para planejamentos necessários de compras, gestão e produção, com a finalidade de garantir a continuidade das operações”.

Estabelece, além disso, que o administrador judicial do processo de recuperação convoque uma assembleia-geral de credores para deliberar sobre o gestor judicial que assumirá a administração da empresa (nº 1000247-90.2018.8.26.0629).

Especialistas ouvidos pelo Valor dizem que os credores poderão decidir, nessa assembleia, por manter o “cão de guarda” como gestor judicial, escolher outro profissional ou mesmo restituir os sócios administradores.

A Avícola Dacar, além disso, deve recorrer contra a decisão que afastou os sócios ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Procurados pelo Valor, os advogados da empresa optaram por não se manifestar. Pessoas próximas, no entanto, dizem que o afastamento dos sócios e a convocação do “cão de guarda” surpreenderam. A empresa preparava a documentação exigida quando saiu a decisão da juíza.

“Simplesmente não deu tempo”, diz um interlocutor. Essa fonte afirma, ainda, que a companhia trabalha com caminhoneiros e precisa fazer saques em dinheiro para os pagamentos de combustível e alimentação dos motoristas. Essa seria a explicação para a movimentação de altas quantias citada na decisão.

Especialista na área, Ricardo Siqueira, do escritório RSSA Advogados, avalia estar havendo uma tendência em se criminalizar a recuperação judicial ou os devedores pelo não fornecimento de informações contábeis e financeiras como solicitado.

Ele pondera que nem todas as empresas estão, do dia para a noite, preparadas para trazer informações em padrões contábeis de renomadas auditorias. “Companhias em crise tendem a ter mais problemas nesse ponto, pois não têm caixa para a contratação de profissionais para fazer frente a essas exigências”, afirma.

Essa situação, acrescenta, na prática cria um problema para o próprio instituto da recuperação judicial. “De um lado temos uma especialização cada vez maior de administradores judiciais, gestores judiciais e peritos e, de outro, hipossuficiência do empresário para atender o padrão imposto”.

A Avícola Dacar entrou com o pedido de recuperação judicial no ano de 2018 e teve o plano de pagamento de dívidas aprovado em assembleia-geral em 2020. Mas segundo credores afirmaram ao Valor, os valores ainda não foram pagos.

É que nove meses depois da aprovação, alegando ter sido prejudicada pela pandemia e por uma inundação em sua sede, a empresa apresentou um plano modificativo - piorando as condições de pagamento pactuadas anteriormente.

A maioria dos credores entendeu que a proposta estava mais para perdão do que pagamento da dívida e não aceitou. Mas três credores concordaram. Entre eles, o detentor do maior volume de créditos do processo e com poder de decisão.

A aprovação do plano modificativo gerou contestações. Em julho do ano passado - ao mesmo tempo em que instituiu a figura do “cão de guarda” - a juíza Renata Salmaso anulou o voto do principal credor, o que provocou uma reviravolta: a rejeição do novo plano.

Segundo a juíza afirma na decisão, a empresa em recuperação e o credor que teve o voto anulado possuem dependência econômica mútua. O credor é praticamente o único fornecedor da devedora e a devedora é praticamente a única cliente do credor, sendo responsável por 93% do seu faturamento. “Desta feita, os interesses do credor extrapolam os interesses de um credor comum, uma vez que está alinhado à recuperanda”, diz na decisão de 2022.

A magistrada considerou o voto abusivo e declarou a nulidade com base no artigo 187 do Código Civil e no artigo 39 da Lei de Recuperações Judiciais. Ela havia dado prazo de 30 dias para que os demais credores - e não a devedora - apresentassem um novo plano de recuperação.

A Avícola Dacar recorreu ao TJSP, mas não há ainda decisão. Ela conseguiu liminar que suspende a realização de novas assembleias de plano de pagamento.

 

Fonte: Valor econômico

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